com a tua tesoura de jardineiro
e começaste a cortar:
umas folhas aqui e ali
uns ramos
que não doeram...
Eu estava desprevenida
quando arrancaste a raiz.
porque as palavras estão gastas, mas não morreram
Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.
A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-próprios.
Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.
Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.
Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.
As infinitas
pequenas coisas. Por uma vez respirar tão-só
na luz das infinitas
pequenas coisas
que nos rodeiam. Ou nada
pode escapar
ao encanto desta escuridão, o olhar
descobrirá que somos apenas
o que nos fez
menos do que somos. Nada a dizer. Dizer:
as nossas vidas mesmas
dependem disso.
Homens que são como lugares mal situados
Homens que são como casas saqueadas
Que são como sítios fora dos mapas
Como pedras fora do chão
Como crianças órfãs
Homens agitados sem bússola onde repousem
Homens que são como fronteiras invadidas
Que são como caminhos barricados
Homens que querem passar pelos atalhos sufocados
Homens sulfatados por todos os destinos
Desempregados das suas vidas
Homens que são como a negação das estratégias
Que são como os esconderijos dos contrabandistas
Homens encarcerados abrindo-se com facas
Homens que são como danos irreparáveis
Homens que são sobreviventes vivos
Homens que são sítios desviados
Do lugar
Daniel Faria
Naquele pic-nic de burguesas,
Houve uma coisa simplesmente bela,
E que, sem ter história nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.
Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão-de-bico
Um ramalhete rubro de papoulas.
Pouco depois, em cima duns penhascos,
Nós acampámos, inda o Sol se via;
E houve talhadas de melão, damascos,
E pão-de-ló molhado em malvasia.
Mas, todo púrpuro a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro de papoulas!
Cesário Verde
Triste quem ama, cego quem se fia
Da feminina voz na vã promessa!
Aspira a vê-la estável! Mais depressa
O facho apagará, que espalha o dia.
Alada exalação, que na sombria
Tácita noite os ares atravessa,
Foi comigo a paixão volúvel de essa
Que o peito me afagava e me feria.
Do desengano o bálsamo lhe aplico,
E a teus laços, Amor, sem medo exponho
Dos benéficos céus o dom mais rico.
Vejo mil Circes, plácido, risonho;
E se fé me prometem, ouço, e fico
Com quem despertou de aéreo sonho.
Bocage
Inútil definir este animal aflito.
Nem palavras,
nem cinzéis,
nem acordes,
nem pincéis,
são gargantas deste grito.
Universo em expansão.
Pincelada de zarcão
Desde mais infinito a menos infinito.
a vida de família tornou-se bem difícil
com as contas a pagar os filhos a fazer
ou a evitar a ranhoca a limpar
a vida de família não tem razão de ser
não tem ração de querer
a vida de família jangada da medusa
é o tablado da antropofagia
mas ficam os retratos cristo virgem maria
e os sobreviventes, que vão chupando os dentes
Alexandre O'Neill
Falas de civilização, e de não dever ser,
Ou de não dever ser assim.
Dizes que todos sofrem, ou a maioria de todos,
Com as cousas humanas postas desta maneira.
Dizes que se fossem diferentes, sofreriam menos.
Dizes que se fossem como tu queres, seria melhor.
Escuto sem te ouvir.
Para quê te quereria eu ouvir?
Ouvindo-te nada ficaria sabendo.
Se as cousas fossem diferentes, seriam diferentes: eis tudo.
Se as cousas fossem como tu queres, seriam só como tu queres.
Ai de ti e de todos que levam a vida
A querer inventar a máquina de fazer felicidade!
Se houvesse degraus na terra e tivesse anéis o céu,
eu subiria os degraus e aos anéis me prenderia.
No céu podia tecer uma nuvem toda negra.
E que nevasse, e chovesse, e houvesse luz nas montanhas,
e à porta do meu amor o ouro se acumulasse.
Beijei uma boca vermelha e a minha boca tingiu-se,
levei um lenço à boca e o lenço fez-se vermelho.
Fui lavá-lo na ribeira e a água tornou-se rubra,
e a fímbria do mar, e o meio do mar,
e vermelhas se volveram as asas da águia
que desceu para beber,
e metade do sol e a lua inteira se tornaram vermelhas.
Maldito seja quem atirou uma maçã para o outro mundo.
Uma maçã, uma mantilha de ouro e uma espada de prata.
Correram os rapazes à procura da espada,
e as raparigas correram à procura da mantilha,
e correram, correram as crianças à procura da maçã.
Herberto Hélder
O Herberto Hélder tem duas
pernas e dois braços, dois olhos,
tem nariz e boca e come, vive
numa casa, espreita pelas janelas,
por vezes sai à rua, sozinho ou
acompanhado, a falar, apanha
chuva, liga a televisão, sabe onde
fica a França, lembra-se quando
era pequenino, inclusive
teve mãe e pai. É
impressionante o quanto um poeta
se pode assemelhar
às pessoas! A última vez que
falei com ele mandou-me um abraço.
valter hugo mãe
Entrei em Londres
num café manhoso (não é só entre nós
que há cafés manhosos, os ingleses também,
e eles até tiveram mais coisas, agora
é só a Escócia e parte da Irlanda e aquelas
ilhotazitas, mas adiante)
Entrei em Londres
num café manhoso, pior ainda que um nosso bar
de praia (isto é só para quem não sabe
fazer uma pequena ideia do que eles por lá têm), era
mesmo muito manhoso,
não é que fosse mal intencionado, era manhoso
na nossa gíria, muito cheio de tapumes e de cozinha
suja. Muito rasca.
Claro que os meus preconceitos todos
de mulher me vieram ao de cima, porque o café
só tinha homens a comer bacon e ovos e tomate
(se fosse em Portugal era sandes de queijo),
mas pensei: Estou em Londres, estou
sozinha, quero lá saber dos homens, os ingleses
até nem se metem como os nossos,
e por aí fora…
E lá entrei no café manhoso, de árvore
de plástico ao canto.
Foi só depois de entrar que vi uma mulher
sentada a ler uma coisa qualquer. E senti-me
mais forte, não sei porquê, mas senti-me mais forte.
Era uma tribo de vinte e três homens e ela sozinha e
depois eu
Lá pedi o café, que não era nada mau
para café manhoso como aquele e o homem
que me serviu disse: There you are, love.
Apeteceu-me responder: I’m not your bloody love ou
Go to hell ou qualquer coisa assim, mas depois
pensei: Já lhes está tão entranhado
nas culturas e a intenção não era má, e também
vou-me embora daqui a pouco, tenho avião
quero lá saber
E paguei o café, que não era nada mau,
e fiquei um bocado assim a olhar à minha volta
a ver a tribo toda a comer ovos e presunto
e depois vi as horas e pensei que o táxi
estava a chegar e eu tinha que sair.
E quando me ia levantar, a mulher sorriu
como quem diz: That’s it
e olhou assim à sua volta para o presunto
e os ovos e os homens todos a comer
e eu sentia-me mais forte, não sei porquê,
mas senti-me mais forte
e pensei que afinal não interessa Londres ou nós,
que em toda a parte
as mesmas coisas são
Desde que tudo me cansa,
Comecei eu a viver.
Comecei a viver sem esperança…
E venha a morte quando Deus quiser.
Dantes, ou muito ou pouco,
Sempre esperara:
Às vezes, tanto, que o meu sonho louco
Voava das estrelas à mais rara;
Outras, tão pouco,
Que ninguém mais com tal se conformara.
Hoje, é que nada espero.
Para quê, esperar?
Sei que já nada é meu senão se o não tiver;
Se quero, é só enquanto apenas quero;
Só de longe, e secreto, é que inda posso amar…
E venha a morte quando Deus quiser.
Mas, com isto, que têm as estrelas?
Continuam brilhando, altas e belas.
A minha Alma, fugiu pela Torre Eiffel acima,
- A verdade é esta, não nos criemos mais ilusões
- Fugiu, mas foi apanhada pela antena da TSF
Que a transmitiu pelo infinito em ondas hertzianas…
(Em todo o caso que belo fim para a minha Alma)!...
Mário de Sá-Carneiro
Serenamente, lembro o meu passado:
Das suas esperanças nada espero,
E sorrio ao seu mal desesperado
Como ao bem das promessas, que não quero.
Que hoje, da vida, só desejo a calma
Da indiferença, num sorriso aberto…
E, na certeza de que tudo é incerto,
Descansa as tuas dúvidas, pobre alma!
Do teu cansaço e tua dor, descansa!
É neste brando enlevo que eu te quero,
Sorrindo ao fundo duma nova esp’rança
Como à ilusão dum novo desespero.
e no princípio
era o silêncio
e Deus
criou o verbo
e aprisionou para sempre
o silêncio dentro do homem
Ozias Filho
Estou a um palmo da parede. Pergunto – se queres saber o que oiço –
O que disseste a Elias: Elias
O que fazes aqui?
Sim, alteio os meus olhos
Conto-te que nunca escrevo nos muros
Junto-me aos animais com sede
Estou a um palmo do teu palmo e depois
Não estás nas águas nem na sede ou no teu nome
Estou a um palmo do teu silêncio e alteio
O silêncio. A boca mais alta do meu grito
Daniel Faria
eu vou pelos caminhos.
Pedalo nas palavras atravesso as cidades
bato às portas das casas e vêm homens espantados
ouvir o meu recado ouvir minha canção.
Na minha bicicleta de recados
eu vou pelos caminhos.
Vem gente para a rua a ver a novidade
como se fosse a chegada
do João que foi à Índia
e era o moço mais galante
que havia nas redondezas.
Eu não sou o João que foi à Índia
mas trago todos os soldados que partiram
e as cartas que não escreveram
e as saudades que tiveram
na minha bicicleta de recados
atravessando a madrugada dos poemas.
Desde o Minho ao Algarve
eu vou pelos caminhos.
E vêm homens perguntar se houve milagre
perguntam pela chuva que já tarda
perguntam pelos filhos que foram à guerra
perguntam pelo sol perguntam pela vida
e vêm homens espantados às janelas
ouvir o meu recado ouvir minha canção.
Porque eu trago notícias de todos os filhos
eu trago a chuva e o sol e a promessa dos trigos
e um cesto carregado de vindima
eu trago a vida
na minha bicicleta de recados
atravessando a madrugada dos poemas.
Manuel Alegre
Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mão à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.
Meto as mãos nas algibeiras
e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro!
Era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes!
e eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos,
no tempo em que o teu corpo era um aquário,
no tempo em que os meus olhos
eram peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.
Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor...,
já se não passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.
Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.
Adeus.
Eugénio de Andrade
Talvez seja verdade: "as palavras estão gastas"!
Para os mais distraídos, trata-se, como se afigura óbvio, de um citação de um dos maiores poetas portugueses que marcaram o século passado - Eugénio de Andrade.
Não, este pequeno espaço não retrata uma possível, sem dúvida merecida, homenagem ao poeta. Todos os dias lhe presto a minha homenagem, em cada palavra, em cada frase, em cada poema talvez, em tudo aquilo que faço e lhe acabo por dever. Não diria que apenas Eugénio de Andrade me marcou, seria aliás uma interjeição falsa, nem tão pouco diria que me inspira - talvez o faça ainda que eu não o saiba, ou não me levede do facto - diria antes que com ele, assim como com muitos outros aprendi coisas que a escola não ensina.
E mais não digo...
...
O que me leva a criar um espaço como este é simplesmente o prazer que a reflexão me traz. Em cada dia, sem excepção, procuro ler pequenos textos, poemas especialmente, pequenas peças de todo um grande puzzle universal: talvez uma pequena pena, uma pluma de gaivota nas praias que abrem num esplendoroso portal de saída, toda uma luz na imensa escuridão; e é no final que concluo - as palavras acabam quase sempre gastas - como quem lê, vê, ouve e nada sente num acontecer, interior talvez, mas, mais provável ainda, interior igualmente, um pequeno arrepio e uns quantos poros eriçados.
Assim, ainda que as palavras estejam gastas como papeis amarrotados que se acumulam num caixote do lixo com requintes florais, serão essas mesmas palavras que irei citar aqui, sempre que se afigurar possível, como textos que tanto amo e, espero eu, causando o mínimo desgaste possível: pelo simples facto de não fazer qualquer tipo de reflexão pessoal que mereça publicação. Não faz, aliás, qualquer tipo de sentido eu apreciar publicamente textos de artistas tão grandes. A reflexão é interior, é aí que ela é rica e genuína.
E assim, concluindo aliás, espero que as palavras não tomem a mal este espaço: elas sim, só elas me poderão perdoar, ainda que gastas;