segunda-feira, 30 de abril de 2007

Sobre o Poema

Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne,
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.

Fora existe o mundo.
Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
as sementes à beira do vento,
— a hora teatral da posse.
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.

E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as órbitas, a face amorfa das paredes,
a miséria dos minutos,
a força sustida das coisas,
a redonda e livre harmonia do mundo.

— Embaixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.

— E o poema faz-se contra o tempo e a carne.

Herberto Hélder

segunda-feira, 2 de abril de 2007

E eu digo-lhe

E eu digo-lhe, que não são
vãos os anos que vivi,
nem inúteis os caminhos percorridos,
ou sem objectivo tudo o que ouvi.
Não são imunes ao mundo,
nem são imaginariamente uma prenda de anos,
os amores em vão também não foram,
amores fraudulentos ou doentes,
a sua luz limpa e imortal
sempre em mim,
sempre de mim.
E nunca é tarde para de novo
começar toda a vida,
encetar o caminho,
para que do passado – nem uma palavra,
nem um gemido seja destruído.



Tradução de Manuel de Seabra.

Olga Berggolts

Da metáfora como charrua

O votivo eco da chuva nas mudas
searas do verão onde percebemos,
até onde o olhar alcança, o movimento
dissonante de dois rapazes espantando
pardais, o último rastilho da inocência.
Eis o imperturbável fôlego da metáfora
devassando os diáfanos campos da mente,
hoje, quando o candente minério das coisas
se converte noutra possibilidade. A evasiva
liberdade do entardecer o desejado antídoto
para a natureza do espírito alienado.

Paulo Teixeira

delírio dor febre rio onde tinha as raízes
deste desencanto das coisas diariamente traindo-se
quando nem mesmo na água me distendia
(nem seria provavelmente pela ausência de janela
donde dependurar as mãos-apaziguamento)
ou seja quando nem mesmo o púbis à tona do banho
escavava na inércia uma presença de espuma.
e por que havia de? às vezes era o enfado
tão bastas vezes em dados tempos que:
os olhos longe a boca uma linha por cortar
os seios imóveis na concha do soutien o ventre
de duna achatando-se paulatinamente o umbigo
sentinela na guarida o sexo retomando por desfastio
memórias idas as coxas diapasão inútil entre lençóis
os tornozelos cianosados os miolos enfim no topo
da pirâmide como entulho. que paisagem esta assim?
delírio febre contusão e o sono abrindo-se tão alto
como a lua nesse crescendo dela consumindo-se
até que tudo não fosse mais que rasgão.

Wanda Ramos

As palavras

Seguram desiguais o mesmo fio
que as trespassa – já foram
mais velhas, mais outras, precisas,
alheias, talvez, e voltaram, serão
vizinhas, repetem, parentes ou não,
não sabem: contêm.
São círculos d’água e o sonho
de um centro qualquer como rosa
ou nome de barco, anúncio, decreto
ou poema;
poema como o limiar do estio
numa voz, nuns lábios e sempre.

Vítor Matos e Sá

Cão Atómico

1.

Este cão tem folhas nas orelhas,
Com quatro talos:
Mas o que este cão devia ter era calos,
E só tem olhos e ossos
E morrinha num dente!
Mas, meu Deus, este cão
Quase o diria meu irmão:
Parece gente!

2.

Este cão é redondo. Está deitado,
Rosna com gengivas de uivo.
Dizem-me que foi lobo,
Mas perdeu a alcateia
Como os homens perderam a Razão,
Que hoje serve de osso ao cão
Escapo ao cogumelo nuclear.
E por essa razão se foi deitar.

Vitorino Nemésio

Poética

De manhã escureço
De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo.

A oeste a morte
Contra quem vivo
Do sul cativo
O oeste é meu norte.

Outros que contem
Passo por passo:
Eu morro ontem

Nasço amanhã
Ando onde há espaço:
- Meu tempo é quando.

Vinícius de Moraes