quinta-feira, 3 de maio de 2007

Cemitério de Pianos - EXCERTO

nunca mais voltou a trabalhar com o meu pai na oficina. Depois de tirar as ligaduras, usou durante semanas a pala de couro que lhe deram no hospital. Um dia, apareceu com o olho limpo e destapado. A pálpebra estendida e branca sobre o olho vazio. No hospital, o doutor disse-lhe que podia voltar a fazer tudo o que fazia antes; mas quando o Simão falava de voltar para a oficina como aprendiz, o meu pai falava de muitas coisas e, sempre por outras palavras, mostrava-lhe que não podia ser. Pedia-lhe que esperasse um pouco mais e mudava de assunto. Numa noite, ao jantar, ainda não tinha feito doze anos, o meu irmão resolveu dizer-nos que tinha arranjado trabalho a dar serventia de pedreiro. Essa foi a primeira vez que o meu pai lhe bateu depois da tarde em que perdeu a vista. Depois dessa ocasião, zangou-se com ele muitas vezes e bateu-lhe muitas vezes. Ao longo de todos estes anos, nunca se zangou comigo e nunca me bateu. Sempre foi claro para mim que o meu pai se zangava e batia no meu irmão porque essa era a sua forma de lidar com a tristeza, com a mágoa que sentiu a partir daquela tarde em que o meu irmão ficou cego de um olho. Essa era a sua forma de o castigar. Sempre foi igualmente claro para mim que o meu pai não se zangava comigo e não me batia pela mesma razão. Essa era a sua forma de me castigar.

José Luís Peixoto

Sem comentários: