quinta-feira, 3 de maio de 2007
Cemitério de Pianos - EXCERTO
Objecto Quase - Contos
segunda-feira, 30 de abril de 2007
Sobre o Poema
Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne,
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.
Fora existe o mundo.
Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
as sementes à beira do vento,
— a hora teatral da posse.
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.
E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as órbitas, a face amorfa das paredes,
a miséria dos minutos,
a força sustida das coisas,
a redonda e livre harmonia do mundo.
— Embaixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.
— E o poema faz-se contra o tempo e a carne.
segunda-feira, 2 de abril de 2007
E eu digo-lhe
E eu digo-lhe, que não são
vãos os anos que vivi,
nem inúteis os caminhos percorridos,
ou sem objectivo tudo o que ouvi.
Não são imunes ao mundo,
nem são imaginariamente uma prenda de anos,
os amores em vão também não foram,
amores fraudulentos ou doentes,
a sua luz limpa e imortal
sempre em mim,
sempre de mim.
E nunca é tarde para de novo
começar toda a vida,
encetar o caminho,
para que do passado – nem uma palavra,
nem um gemido seja destruído.
Tradução de Manuel de Seabra.
Olga Berggolts
Da metáfora como charrua
O votivo eco da chuva nas mudas
searas do verão onde percebemos,
até onde o olhar alcança, o movimento
dissonante de dois rapazes espantando
pardais, o último rastilho da inocência.
Eis o imperturbável fôlego da metáfora
devassando os diáfanos campos da mente,
hoje, quando o candente minério das coisas
se converte noutra possibilidade. A evasiva
liberdade do entardecer o desejado antídoto
para a natureza do espírito alienado.
delírio dor febre rio onde tinha as raízes
deste desencanto das coisas diariamente traindo-se
quando nem mesmo na água me distendia
(nem seria provavelmente pela ausência de janela
donde dependurar as mãos-apaziguamento)
ou seja quando nem mesmo o púbis à tona do banho
escavava na inércia uma presença de espuma.
e por que havia de? às vezes era o enfado
tão bastas vezes em dados tempos que:
os olhos longe a boca uma linha por cortar
os seios imóveis na concha do soutien o ventre
de duna achatando-se paulatinamente o umbigo
sentinela na guarida o sexo retomando por desfastio
memórias idas as coxas diapasão inútil entre lençóis
os tornozelos cianosados os miolos enfim no topo
da pirâmide como entulho. que paisagem esta assim?
delírio febre contusão e o sono abrindo-se tão alto
como a lua nesse crescendo dela consumindo-se
até que tudo não fosse mais que rasgão.
As palavras
Seguram desiguais o mesmo fio
que as trespassa – já foram
mais velhas, mais outras, precisas,
alheias, talvez, e voltaram, serão
vizinhas, repetem, parentes ou não,
não sabem: contêm.
São círculos d’água e o sonho
de um centro qualquer como rosa
ou nome de barco, anúncio, decreto
ou poema;
poema como o limiar do estio
numa voz, nuns lábios e sempre.
Cão Atómico
1.
Este cão tem folhas nas orelhas,
Com quatro talos:
Mas o que este cão devia ter era calos,
E só tem olhos e ossos
E morrinha num dente!
Mas, meu Deus, este cão
Quase o diria meu irmão:
Parece gente!
2.
Este cão é redondo. Está deitado,
Rosna com gengivas de uivo.
Dizem-me que foi lobo,
Mas perdeu a alcateia
Como os homens perderam a Razão,
Que hoje serve de osso ao cão
Escapo ao cogumelo nuclear.
E por essa razão se foi deitar.
Poética
De manhã escureço
De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo.
A oeste a morte
Contra quem vivo
Do sul cativo
O oeste é meu norte.
Outros que contem
Passo por passo:
Eu morro ontem
Nasço amanhã
Ando onde há espaço:
- Meu tempo é quando.
sexta-feira, 30 de março de 2007
a árvore
com a tua tesoura de jardineiro
e começaste a cortar:
umas folhas aqui e ali
uns ramos
que não doeram...
Eu estava desprevenida
quando arrancaste a raiz.
poema para o meu amor doente
e cheguei ao pé de ti
de mãos vazias.
quinta-feira, 29 de março de 2007
Segue o teu destino
Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.
A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-próprios.
Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.
Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.
Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.
Credo
As infinitas
pequenas coisas. Por uma vez respirar tão-só
na luz das infinitas
pequenas coisas
que nos rodeiam. Ou nada
pode escapar
ao encanto desta escuridão, o olhar
descobrirá que somos apenas
o que nos fez
menos do que somos. Nada a dizer. Dizer:
as nossas vidas mesmas
dependem disso.
Bebendo vinho com alguns contemporâneos
As consequências de um choro na configuração do rosto.
A erva destrói o exterior da moradia.
O tédio é fraca compensação dos compromissos.
Que dizeis a este fim de caminho, onde o escritor recupera
a verdadeira solenidade da Afirmação?
Não conheço outro modo de escrever, isto é,
de substituir ao arrojo invertebrado da juventude
a coragem de uma lúcida conveniência. Assim,
renuncio ao pessimismo em proveito de outros sentimentos
mais fecundos – o nojo, o orgulho, o desejo nunca satisfeito.
Se acaso me ouvis
-não terei eu razão?
Geórgica
Do teu próprio pomar.
Guarda republicana há sempre em toda a parte
Onde não temos nada,
E a força é cega por definição.
Ora no teu pomar
Podes serenamente
Gozar o transitório paraíso.
Na pequenina haste
Que um dia tu plantaste
Nasceram frutos túmidos e doces
Que são teus.
Colhe, pois, esses frutos.
Não faças como o Adão e como a Eva, uns brutos
Que comeram maçãs, mas do pomar de Deus.
segunda-feira, 26 de março de 2007
Salazar - O Grande Português (dizem os portugueses)
domingo, 25 de março de 2007
Homens que são como lugares mal situados
Homens que são como casas saqueadas
Que são como sítios fora dos mapas
Como pedras fora do chão
Como crianças órfãs
Homens agitados sem bússola onde repousem
Homens que são como fronteiras invadidas
Que são como caminhos barricados
Homens que querem passar pelos atalhos sufocados
Homens sulfatados por todos os destinos
Desempregados das suas vidas
Homens que são como a negação das estratégias
Que são como os esconderijos dos contrabandistas
Homens encarcerados abrindo-se com facas
Homens que são como danos irreparáveis
Homens que são sobreviventes vivos
Homens que são sítios desviados
Do lugar
Daniel Faria
De Tarde
Naquele pic-nic de burguesas,
Houve uma coisa simplesmente bela,
E que, sem ter história nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.
Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão-de-bico
Um ramalhete rubro de papoulas.
Pouco depois, em cima duns penhascos,
Nós acampámos, inda o Sol se via;
E houve talhadas de melão, damascos,
E pão-de-ló molhado em malvasia.
Mas, todo púrpuro a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro de papoulas!
Cesário Verde
Triste quem ama, cego quem se fia
Triste quem ama, cego quem se fia
Da feminina voz na vã promessa!
Aspira a vê-la estável! Mais depressa
O facho apagará, que espalha o dia.
Alada exalação, que na sombria
Tácita noite os ares atravessa,
Foi comigo a paixão volúvel de essa
Que o peito me afagava e me feria.
Do desengano o bálsamo lhe aplico,
E a teus laços, Amor, sem medo exponho
Dos benéficos céus o dom mais rico.
Vejo mil Circes, plácido, risonho;
E se fé me prometem, ouço, e fico
Com quem despertou de aéreo sonho.
Bocage
Homem
Inútil definir este animal aflito.
Nem palavras,
nem cinzéis,
nem acordes,
nem pincéis,
são gargantas deste grito.
Universo em expansão.
Pincelada de zarcão
Desde mais infinito a menos infinito.
a vida de família
a vida de família tornou-se bem difícil
com as contas a pagar os filhos a fazer
ou a evitar a ranhoca a limpar
a vida de família não tem razão de ser
não tem ração de querer
a vida de família jangada da medusa
é o tablado da antropofagia
mas ficam os retratos cristo virgem maria
e os sobreviventes, que vão chupando os dentes
Alexandre O'Neill
Falas de Civilização
Falas de civilização, e de não dever ser,
Ou de não dever ser assim.
Dizes que todos sofrem, ou a maioria de todos,
Com as cousas humanas postas desta maneira.
Dizes que se fossem diferentes, sofreriam menos.
Dizes que se fossem como tu queres, seria melhor.
Escuto sem te ouvir.
Para quê te quereria eu ouvir?
Ouvindo-te nada ficaria sabendo.
Se as cousas fossem diferentes, seriam diferentes: eis tudo.
Se as cousas fossem como tu queres, seriam só como tu queres.
Ai de ti e de todos que levam a vida
A querer inventar a máquina de fazer felicidade!
Se houvesse...
Se houvesse degraus na terra e tivesse anéis o céu,
eu subiria os degraus e aos anéis me prenderia.
No céu podia tecer uma nuvem toda negra.
E que nevasse, e chovesse, e houvesse luz nas montanhas,
e à porta do meu amor o ouro se acumulasse.
Beijei uma boca vermelha e a minha boca tingiu-se,
levei um lenço à boca e o lenço fez-se vermelho.
Fui lavá-lo na ribeira e a água tornou-se rubra,
e a fímbria do mar, e o meio do mar,
e vermelhas se volveram as asas da águia
que desceu para beber,
e metade do sol e a lua inteira se tornaram vermelhas.
Maldito seja quem atirou uma maçã para o outro mundo.
Uma maçã, uma mantilha de ouro e uma espada de prata.
Correram os rapazes à procura da espada,
e as raparigas correram à procura da mantilha,
e correram, correram as crianças à procura da maçã.
Herberto Hélder
O Herberto Hélder tem duas
pernas e dois braços, dois olhos,
tem nariz e boca e come, vive
numa casa, espreita pelas janelas,
por vezes sai à rua, sozinho ou
acompanhado, a falar, apanha
chuva, liga a televisão, sabe onde
fica a França, lembra-se quando
era pequenino, inclusive
teve mãe e pai. É
impressionante o quanto um poeta
se pode assemelhar
às pessoas! A última vez que
falei com ele mandou-me um abraço.
valter hugo mãe
RELEVO
com o deserto na sede
do olhar levavam tâmaras
secas o perfil suavíssimo
das ameias
e se paravam a interrogar
o vento
uma cabra alvorecia
atrás do mar
sábado, 24 de março de 2007
lugares comuns
Entrei em Londres
num café manhoso (não é só entre nós
que há cafés manhosos, os ingleses também,
e eles até tiveram mais coisas, agora
é só a Escócia e parte da Irlanda e aquelas
ilhotazitas, mas adiante)
Entrei em Londres
num café manhoso, pior ainda que um nosso bar
de praia (isto é só para quem não sabe
fazer uma pequena ideia do que eles por lá têm), era
mesmo muito manhoso,
não é que fosse mal intencionado, era manhoso
na nossa gíria, muito cheio de tapumes e de cozinha
suja. Muito rasca.
Claro que os meus preconceitos todos
de mulher me vieram ao de cima, porque o café
só tinha homens a comer bacon e ovos e tomate
(se fosse em Portugal era sandes de queijo),
mas pensei: Estou em Londres, estou
sozinha, quero lá saber dos homens, os ingleses
até nem se metem como os nossos,
e por aí fora…
E lá entrei no café manhoso, de árvore
de plástico ao canto.
Foi só depois de entrar que vi uma mulher
sentada a ler uma coisa qualquer. E senti-me
mais forte, não sei porquê, mas senti-me mais forte.
Era uma tribo de vinte e três homens e ela sozinha e
depois eu
Lá pedi o café, que não era nada mau
para café manhoso como aquele e o homem
que me serviu disse: There you are, love.
Apeteceu-me responder: I’m not your bloody love ou
Go to hell ou qualquer coisa assim, mas depois
pensei: Já lhes está tão entranhado
nas culturas e a intenção não era má, e também
vou-me embora daqui a pouco, tenho avião
quero lá saber
E paguei o café, que não era nada mau,
e fiquei um bocado assim a olhar à minha volta
a ver a tribo toda a comer ovos e presunto
e depois vi as horas e pensei que o táxi
estava a chegar e eu tinha que sair.
E quando me ia levantar, a mulher sorriu
como quem diz: That’s it
e olhou assim à sua volta para o presunto
e os ovos e os homens todos a comer
e eu sentia-me mais forte, não sei porquê,
mas senti-me mais forte
e pensei que afinal não interessa Londres ou nós,
que em toda a parte
as mesmas coisas são
Sabedoria
Desde que tudo me cansa,
Comecei eu a viver.
Comecei a viver sem esperança…
E venha a morte quando Deus quiser.
Dantes, ou muito ou pouco,
Sempre esperara:
Às vezes, tanto, que o meu sonho louco
Voava das estrelas à mais rara;
Outras, tão pouco,
Que ninguém mais com tal se conformara.
Hoje, é que nada espero.
Para quê, esperar?
Sei que já nada é meu senão se o não tiver;
Se quero, é só enquanto apenas quero;
Só de longe, e secreto, é que inda posso amar…
E venha a morte quando Deus quiser.
Mas, com isto, que têm as estrelas?
Continuam brilhando, altas e belas.
A minha Alma, fugiu pela Torre Eiffel acima
A minha Alma, fugiu pela Torre Eiffel acima,
- A verdade é esta, não nos criemos mais ilusões
- Fugiu, mas foi apanhada pela antena da TSF
Que a transmitiu pelo infinito em ondas hertzianas…
(Em todo o caso que belo fim para a minha Alma)!...
Mário de Sá-Carneiro
Serenamente
Serenamente, lembro o meu passado:
Das suas esperanças nada espero,
E sorrio ao seu mal desesperado
Como ao bem das promessas, que não quero.
Que hoje, da vida, só desejo a calma
Da indiferença, num sorriso aberto…
E, na certeza de que tudo é incerto,
Descansa as tuas dúvidas, pobre alma!
Do teu cansaço e tua dor, descansa!
É neste brando enlevo que eu te quero,
Sorrindo ao fundo duma nova esp’rança
Como à ilusão dum novo desespero.
sexta-feira, 23 de março de 2007
ONDE MORAR
sob céus arrumados pela manhã.
ou então um rosto enrugado
à janela. a porta ali ao lado.
água na pedra. e além
os cavalos que relinchavam como quem canta
a incendiar o vento. degraus. uma
casa em transumância. a pétala
que me lavra enquanto vou: havia
a música e os sobreiros na lonjura
havia a seara o astro a chuva.
pétala. meu lume
no cimo da ternura.
roxo de palha e cal. e um rio que
corre. entre degraus.
um rio onde fulgir, onde morar.
quarta-feira, 21 de março de 2007
Painel
E em corpo de lembrança divaguei Além dos horizontes,
E toda a pátria terra percorri, E o mar e o céu azul,
Onde os anjos da velha Lusitânia
Voam como através da nossa fantasia.
Vejo campos elíseos de verdura,
Serras azuis de infinda suavidade;
E a serra do Gerês,
Com os seus altos baluartes esculpidos
A pancadas de chuva e de granizo
E a golpes de relâmpagos.
Vejo rios dormentes,
Misteriosos vales, que se alargam
Em cultivadas várzeas;
Ovelhinhas pastando em místicos outeiros
E pastores tangendo a flauta do deus Pã;
Meda de palha nos eirados,
Velhas choupanas que fumegam;
Sobre o quinteiro, à porta, uma ramada verde,
E, mais em baixo, num recanto escuro,
Uma bica de pedra a deitar água fresca
Num cântaro de barro.
E em lugares sinistros,
Que o medo despovoa,
Arruinados solares, onde habitam
Fantasmas e corujas, quando a Lua
Derrama, na solidão extática das noites,
Não sei que frio alvor e que tristeza de alma.
Praias de espuma e névoa, incêndios de oiro, à tarde,
Entre pinhais, fugindo, desgrenhados,
Na direcção do vento...
E cidades, vivendo protegidas
Por santos tutelares:
Viana e Santa Luzia e Braga e o Bom Jesus,
E Guimarães aos pés dum Pio IX em pedra,
Católica e Romana.
E o Porto de Herculano,
Como Lisboa é de Garrett.
Lisboa em gesso branco, o Porto em pedra escura,
Sobre os abruptos alcantis do Douro;
Esse rio que vem de longe, solitário,
Cobrir-se de asas brancas de navios
E de negros canudos de vapores.
Encostados aos cais, depõem a férrea carga.
Outros, vão demandando a barra e o farolim,
Que dá uma luz - tão triste! - em noites invernosas.
Distante, no poente, esfuma-se uma nódoa
Em verdes tons fluídos que palpitam
Numa névoa indecisa, vaga imagem
Da tristeza do mar pintada em nossos olhos.
terça-feira, 20 de março de 2007
A Orfeu
Herdei a lira que não sei tanger;
Por eleição ou maldição secreta,
Tenho uma grade para me prender.
Cercam-me as cordas, de emoção,
Versos de ferro onde me rasgo inteiro.
Mas, do fundo da alma e da prisão,
Miguel Torga
Instante
a vida que está entre
santo e senha;
o nó que os cabelos atam
quando se desatam;
um tremer de lábios que
surpreende os mais sábios;
um fulgor de olhos
em que a luz se suspende;
a voz que se ouve
quando o amor se rende.
A sombra no tapete
que te acompanha quando a luz
projecta no chão a imagem que perdes
ao sair do espelho. E sei que há um ritmo
branco neste espaço que deixas entre
a cadeira e a porta, para que
as minhas palavras o encham
com a tua ausência.
Às vezes, é como se um sol
viesse ao teu encontro, para te roubar
à noite, e me espalhasse pela memória
os teus cabelos no movimento de nuvem
que se perde no horizonte do verso,
de onde se soltam as aves
e a espuma perfeita de um corpo
antigo.
Outras vezes, o olhar que vem
ao meu encontro cruza-se com o teu, como se
o amor fosse o resultado
desta soma de diferenças, e a razão
da primavera se encontrasse na linha
que os teus passos desenham,
num eco de voz que a manhã suspende,
no peso adormecido de uma leveza de ombros.
E cubro com a seda do silêncio
o vidro da tua boca.
segunda-feira, 19 de março de 2007
Ode Triunfal *EXCERTO
Que emprega palavrões como palavras usuais,
Cujos filhos roubam às portas das mercearias
E cujas filhas aos oito anos – e eu acho isto belo e amo-o! –
Masturbam homens de aspecto decente nos vãos de escada.
A gentalha que anda pelos andaimes e que vai para casa
Por vielas quase irreais de estreiteza e podridão.
as nuvens passam como vedoras
vedoras, inclinam já
sobre meu coração hídrico, fico
vigilante, domando a minha
cabeça apétala e ecoadora
se for um espasmo no amor
de deus, silenciar-me-ei em
ansiedade boca fremindo
à tona dos odores
valter hugo mãe
O Evangelho segundo Jesus Cristo *EXCERTO
O Homem do Corvo (contos) *EXCERTO
Poema Cinza
do instante, a arborizar o vento.
talvez a água
antes do eclipse.
abre-se como um mapa
por onde os riachos empardecem.
vincos, nós, odor a cisco sob a canícula.
ou espuma também?
toda a terra é memória, lugar
à margem,
horizonte oscilando no tempo
enquanto os pássaros
revoam.
enreda-se na ferida das cidades
e talha as casas, já
o mundo arde
num navio de cores.
vara, por último. negrilho, por exemplo.
bordão
encurvando
para a cinza.
em redor, outras tardes. tardes ao pé da porta,
quem sabe.
tardes, moscas, pedras.
um jeito de harpa
a quebrar-se.
e nenhuma música mais.
música nenhuma, não.
sábado, 17 de março de 2007
génesis
e no princípio
era o silêncio
e Deus
criou o verbo
e aprisionou para sempre
o silêncio dentro do homem
Ozias Filho
A hora da partida
Escurece o jardim e o vento passa,
Estala o chão e as portas batem, quando
A noite cada nó em si deslaça.
A hora da partida soa quando
as árvores parecem inspiradas
Como se tudo nelas germinasse.
Soa quando no fundo dos espelhos
Me é estranha e longínqua a minha face
E de mim se desprende a minha vida.
Estou a um palmo da parede...
Estou a um palmo da parede. Pergunto – se queres saber o que oiço –
O que disseste a Elias: Elias
O que fazes aqui?
Sim, alteio os meus olhos
Conto-te que nunca escrevo nos muros
Junto-me aos animais com sede
Estou a um palmo do teu palmo e depois
Não estás nas águas nem na sede ou no teu nome
Estou a um palmo do teu silêncio e alteio
O silêncio. A boca mais alta do meu grito
Daniel Faria
Mors-Amor
Escuto em sonhos, quando a sombra desce,
E, passando a galope, me aparece
Da noite nas fantásticas estradas,
Donde vem ele? Que regiões sagradas
E terríveis cruzou, que assim parece
Tenebroso e sublime, e lhe estremece
Não sei que horror nas crinas agitadas?
Um cavaleiro de expressão potente,
Formidável, mas plácido, no porte,
Vestido de armadura reluzente,
Cavalga a fera estranha sem temor:
E o corcel negro diz: "Eu sou a Morte!"
Conselho
que a palavra amadureça
e se desprenda como um fruto
ao passar o vento que a mereça.
sexta-feira, 16 de março de 2007
A Génese do Amor (ÚLTIMA MEDITAÇÃO DE CAMÕES II)
o mantimento
que trouxe de jornada,
e alimentaste a génese de tudo
nas visões
mais amargas
Ainda que em silêncio,
diz-me agora
de como pode ser
contentamento
este fogo de luz:
cruel morada
Dá-me outra vez,
em papel brando,
o mundo:
Eu: queimando por versos
um segundo,
tu, por um som,
ardendo eternidade
Bicicleta de Recados
eu vou pelos caminhos.
Pedalo nas palavras atravesso as cidades
bato às portas das casas e vêm homens espantados
ouvir o meu recado ouvir minha canção.
Na minha bicicleta de recados
eu vou pelos caminhos.
Vem gente para a rua a ver a novidade
como se fosse a chegada
do João que foi à Índia
e era o moço mais galante
que havia nas redondezas.
Eu não sou o João que foi à Índia
mas trago todos os soldados que partiram
e as cartas que não escreveram
e as saudades que tiveram
na minha bicicleta de recados
atravessando a madrugada dos poemas.
Desde o Minho ao Algarve
eu vou pelos caminhos.
E vêm homens perguntar se houve milagre
perguntam pela chuva que já tarda
perguntam pelos filhos que foram à guerra
perguntam pelo sol perguntam pela vida
e vêm homens espantados às janelas
ouvir o meu recado ouvir minha canção.
Porque eu trago notícias de todos os filhos
eu trago a chuva e o sol e a promessa dos trigos
e um cesto carregado de vindima
eu trago a vida
na minha bicicleta de recados
atravessando a madrugada dos poemas.
Manuel Alegre
Ó sino da minha aldeia
Dolente na tarde calma,
Cada tua balada
Soa dentro da minha alma.
E é tão lento o teu soar,
Tão como triste da vida,
Que já a primeira pancada
Tem o som de repetida.
Por mais que me tanjas de perto
Quando passo, sempre errante,
És para mim como um sonho,
Soas-me na alma distante.
A cada pancada tua,
Vibrante no céu aberto,
Sinto mais longe o passado,
Sinto a saudade mais perto.
Praia
Caminho ao longo dos oceanos frios
As ondas desenrolam os seus braços
E brancas tombam de bruços
A praia é longa e lisa sob o vento
Saturada de espaços e maresia
E para trás de mim fica o murmúrio
Das ondas enroladas como búzios
Contrariedades
Nem posso tolerar os livros mais bizarros.
Incrível! Já fumei três maços de cigarros
Consecutivamente.
Dói-me a cabeça. Abafo uns desesperos mudos:
Tanta depravação nos usos, nos costumes!
Amo, insensatamente, os ácidos, os gumes
E os ângulos agudos.
Sentei-me à secretária. Ali defronte mora
Uma infeliz, sem peito, os dois pulmões doentes;
Sofre de faltas de ar, morreram-lhe os parentes
E engoma para fora.
Pobre esqueleto branco entre as nevadas roupas!
Tão lívida! O doutor deixou-a. Mortifica.
Lidando sempre! E deve conta à botica!
Mal ganha para sopas...
O obstáculo estimula, torna-nos perversos;
Agora sinto-me eu cheio de raivas frias,
Por causa dum jornal me rejeitar, há dias,
Um folhetim de versos.
Que mau humor! Rasguei uma epopeia morta
No fundo da gaveta. O que produz o estudo?
Mais uma redacção, das que elogiam tudo,
Me tem fechado a porta.
A crítica segundo o método de Taine
Ignoram-na. Juntei numa fogueira imensa
Muitíssimos papéis inéditos. A Imprensa
Vale um desdém solene.
Com raras excepções, merece-me o epigrama.
Deu meia-noite; e a paz pela calçada abaixo,
Um sol-e-dó. Chovisca. O populacho
Diverte-se na lama.
Eu nunca dediquei poemas às fortunas,
Mas sim, por deferência, a amigos ou a artistas.
Independente! Só por isso os jornalistas
Me negam as colunas.
Receiam que o assinante ingénuo os abandone,
Se forem publicar tais coisas, tais autores.
Arte? Não lhes convém, visto que os seus leitores
Deliram por Zaccone.
Um prosador qualquer desfruta fama honrosa,
Obtém dinheiro, arranja a sua "coterie";
E a mim, não há questão que mais me contrarie
Do que escrever em prosa.
A adulaçãao repugna aos sentimento finos;
Eu raramente falo aos nossos literatos,
E apuro-me em lançar originais e exactos,
Os meus alexandrinos...
E a tísica? Fechada, e com o ferro aceso!
Ignora que a asfixia a combustão das brasas,
Não foge do estendal que lhe humedece as casas,
E fina-se ao desprezo!
Mantém-se a chá e pão! Antes entrar na cova.
Esvai-se; e todavia, à tarde, fracamente,
Oiço-a cantarolar uma canção plangente
Duma opereta nova!
Perfeitamente. Vou findar sem azedume.
Quem sabe se depois, eu rico e noutros climas,
Conseguirei reler essas antigas rimas,
Impressas em volume?
Nas letras eu conheço um campo de manobras;
Emprega-se a "réclame", a intriga, o anúncio, a "blague",
E esta poesia pede um editor que pague
Todas as minhas obras...
E estou melhor; passou-me a cólera. E a vizinha?
A pobre engomadeira ir-se-á deitar sem ceia?
Vejo-lhe a luz no quarto. Inda trabalha. É feia...
Que mundo! Coitadinha!
Adeus
Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mão à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.
Meto as mãos nas algibeiras
e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro!
Era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes!
e eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos,
no tempo em que o teu corpo era um aquário,
no tempo em que os meus olhos
eram peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.
Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor...,
já se não passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.
Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.
Adeus.
Eugénio de Andrade
"as palavras estão gastas"
Talvez seja verdade: "as palavras estão gastas"!
Para os mais distraídos, trata-se, como se afigura óbvio, de um citação de um dos maiores poetas portugueses que marcaram o século passado - Eugénio de Andrade.
Não, este pequeno espaço não retrata uma possível, sem dúvida merecida, homenagem ao poeta. Todos os dias lhe presto a minha homenagem, em cada palavra, em cada frase, em cada poema talvez, em tudo aquilo que faço e lhe acabo por dever. Não diria que apenas Eugénio de Andrade me marcou, seria aliás uma interjeição falsa, nem tão pouco diria que me inspira - talvez o faça ainda que eu não o saiba, ou não me levede do facto - diria antes que com ele, assim como com muitos outros aprendi coisas que a escola não ensina.
E mais não digo...
...
O que me leva a criar um espaço como este é simplesmente o prazer que a reflexão me traz. Em cada dia, sem excepção, procuro ler pequenos textos, poemas especialmente, pequenas peças de todo um grande puzzle universal: talvez uma pequena pena, uma pluma de gaivota nas praias que abrem num esplendoroso portal de saída, toda uma luz na imensa escuridão; e é no final que concluo - as palavras acabam quase sempre gastas - como quem lê, vê, ouve e nada sente num acontecer, interior talvez, mas, mais provável ainda, interior igualmente, um pequeno arrepio e uns quantos poros eriçados.
Assim, ainda que as palavras estejam gastas como papeis amarrotados que se acumulam num caixote do lixo com requintes florais, serão essas mesmas palavras que irei citar aqui, sempre que se afigurar possível, como textos que tanto amo e, espero eu, causando o mínimo desgaste possível: pelo simples facto de não fazer qualquer tipo de reflexão pessoal que mereça publicação. Não faz, aliás, qualquer tipo de sentido eu apreciar publicamente textos de artistas tão grandes. A reflexão é interior, é aí que ela é rica e genuína.
E assim, concluindo aliás, espero que as palavras não tomem a mal este espaço: elas sim, só elas me poderão perdoar, ainda que gastas;